MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: Decisão Hokomawe‏

"A Ação Civil Pública é originada de uma luta da Hutukara Associação Yanomami para melhorar o atendimento a saúde na Região do Hokomawe, onde o Distrito de Saúde Yanomami não vem prestando serviços aos Yanomami daquela região, verdadeiro descaso".

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PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE RORAIMAProcesso N° 0002098-75.2015.4.01.4200 - 2ª VARA FEDERAL Nº de registro e-CVD 00006.2015.00024200.1.00611/00033CLASSE: 7100 – AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROCESSO Nº: 2098-75.2015.4.01.4200 AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL REU: UNIÃO DECISÃO

Trata-se de Ação Civil Pública, com pedido de antecipação da tutela, ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da União, objetivando a condenação da ré na obrigação de fazer consubstanciada no atendimento mensal às comunidades indígenas Lapaz e Hokomanawo, por meio de equipe de saúde multidisciplinar, bem como na construção de posto de saúde na localidade.O requerente aduz que por meio de ofício encaminhado pela Hutukara Associação Yanomami e o Instituto Socioambiental foi relatada preocupante situação sanitária dos membros das referidas comunidades, que estariam passando por um surto epidêmico, com quadro epidemiológico grave e com a ocorrência de diversos óbitos.Informa que tal situação foi apurada por meio do Inquérito civil 1.32.000.000592/2012-42, no qual constam informações prestadas pelo DISEI – YANOMAMI (Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami), dando conta das medidas tomadas em relação às referidas comunidades.

Alega terem sido realizadas somente duas visitas às comunidades durante o ano de 2014, número insuficiente para concretizar as finalidades da política de atenção básica aos povos indígenas.Aduz que ambas as comunidades situam-se em território brasileiro e que só eventualmente os indígenas ultrapassam nossas fronteira, passando para o território venezuelano.Desta forma, requer seja determinado à requerida, em sede de antecipação dos efeitos da tutela, que providencie o deslocamento de equipes multidisciplinares com a finalidade de acompanhar o estado de saúde dos membros das comunidades mencionadas, bem como a construção de um posto de saúde com a finalidade de prestar o atendimento básico.

Acompanha a inicial o Inquérito civil nº 1.32.000.000592/2012-42.Instada a se manifestar quanto ao pedido antecipatório, a União apresentou manifestação contrária às fls. 19/28, na qual alega a necessidade de dilação probatória; a inexatidão quanto à perfeita localização das comunidades em solo brasileiro; e a inocuidade das medidas diante da condição nômade das comunidades.É o relatório. Decido.A tutela antecipatória exige a configuração dos pressupostos de verossimilhança da alegação e perigo de dano irreversível para a parte requerente, além de não se incidir na irreversibilidade do provimento solicitado, consoante advertência contida no §2º do art. 273 do CPC.

 

Inicialmente, cumpre registrar que o direito à saúde possui sede constitucional e é decorrência lógica do direito à vida. Quanto ao tratamento dispensado ao tema, assim estabelece a Constituição da República:Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (negritei) Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.A Lei nº 8.080/90 que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde, estabelece o caráter universal, igualitário, contínuo   e despido de preconceitos do atendimento de saúde prestado pelo Estado.

O que se infere dos artigos seguintes:Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (...) Art. 5º São objetivos do Sistema Único de Saúde SUS: (...) III - a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas. (...)

As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;

II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;

III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;

IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;Tendo em vista as suas peculiaridades, no que tange à saúde indígena, a Lei nº 9.836/1999 cria um subsistema de atenção à saúde que visa garantir atendimento diferenciado, com observância da realidade local e as especificidades culturais dos povos.Tal subsistema tem o seguinte tratamento:Art. 19-F. Dever-se-á obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional. Art. 19-G.

O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena deverá ser, como o SUS, descentralizado, hierarquizado e regionalizado. § 1o O Subsistema de que trata o caput deste artigo terá como base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas. § 2o O SUS servirá de retaguarda e referência ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, devendo, para isso, ocorrer adaptações na estrutura e organização do SUS nas regiões onde residem as populações indígenas, para propiciar essa integração e o atendimento necessário em todos os níveis, sem discriminações.

As populações indígenas devem ter acesso garantido ao SUS, em âmbito local, regional e de centros especializados, de acordo com suas necessidades, compreendendo a atenção primária, secundária e terciária à saúde. (negritei)Adensando o tratamento do tema, foi editada pelo ministério da Saúde a Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002, na qual constam as diretrizes, organização e objetivos das políticas de saúde voltadas aos povos indígenas. Em tal diploma está consignado o funcionamento do subsistema voltado ao atendimento à saúde indígena nos mais diversos níveis.Respeitando as peculiaridades das diversas comunidades localizadas em solo brasileiro, não foi estabelecida periodicidade fixa do atendimento das equipes multidisciplinares de saúde, devendo ser analisados os aspectos culturais, geográficos e epidemiológicos para tanto.

De um modo geral, a referida portaria estabelece que o tratamento básico de saúde deverá ser levado a cabo por meio de postos de saúde localizados nas aldeias e que, respeitada a gravidade do caso e a necessidade de atendimento, os demais procedimentos devem ser realizados nos polos base ou por meio das unidades do Sistema Único de Saúde. Vejamos:4.1.2 – Organização Para a definição e organização dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas deverão ser realizadas discussões e debates com a participação de lideranças e organizações indígenas, do órgão indigenista oficial, de antropólogos, universidades e instituições governamentais e não-governamentais que prestam serviços às comunidades indígenas, além de secretarias municipais e estaduais de Saúde.

Cada distrito organizará uma rede de serviços de atenção básica de saúde dentro das áreas indígenas, integrada e hierarquizada com complexidade crescente e articulada com a rede do Sistema Único de Saúde. As Comissões Intergestores Bipartites são importantes espaços de articulação para o eficaz funcionamento dos distritos. As equipes de saúde dos distritos deverão ser compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde, contando com a participação sistemática de antropólogos, educadores, engenheiros sanitaristas e outros especialistas e técnicos considerados necessários. O número, qualificação e perfil dos profissionais das equipes serão estabelecidos de acordo com o planejamento detalhado de atividades, considerando: o número de habitantes, a dispersão populacional, as condições de acesso, o perfil epidemiológico, as necessidades específicas para o controle das principais endemias e o Programa de Formação de Agentes Indígenas de Saúde a ser definido conforme a diretriz específica desta política.

Nas aldeias, a atenção básica será realizada por intermédio dos Agentes Indígenas de Saúde, nos postos de saúde, e pelas equipes multidisciplinares periodicamente, conforme planejamento das suas ações. Na organização dos serviços de saúde, as comunidades terão uma outra instância de atendimento, que serão os Pólos-Base. Os pólos são a primeira referência para os agentes indígenas de saúde que atuam nas aldeias. Podem estar localizados numa comunidade indígena ou num município de referência. Neste último caso, correspondem a uma unidade básica de saúde, já existente na rede de serviços daquele município. A maioria dos agravos à saúde deverão ser resolvidas nesse nível. As demandas que não forem atendidas no grau de resolutividade dos PólosBase deverão ser referenciadas para a rede de serviços do SUS, de acordo com a realidade de cada Distrito Sanitário Especial Indígena. Essa rede já tem sua localização geográfica definida e será articulada e incentivada a atender os índios, levando em consideração a realidade socioeconômica e a cultura de cada povo indígena, por intermédio de diferenciação de financiamento.

Com o objetivo de garantir o acesso à atenção de média e alta complexidades, deverão ser definidos procedimentos de referência, contra-referência e incentivo a unidades de saúde pela oferta de serviços diferenciados com influência sobre o processo de recuperação e cura dos pacientes indígenas (como os relativos a restrições/prescrições alimentares, acompanhamento por parentes e/ou intérprete, visita de terapeutas tradicionais, instalação de redes, entre outros) quando considerados necessários pelos próprios usuários e negociados com o prestador de serviço. Deverão ser oferecidos, ainda, serviços de apoio aos pacientes encaminhados à rede do Sistema Único de Saúde. Tais serviços serão prestados pelas Casas de Saúde Indígena, localizadas em municípios de referência dos distritos a partir da readequação das Casas do Índio. Essas Casas de Saúde deverão estar em condições de receber, alojar e alimentar pacientes encaminhados e acompanhantes, prestar assistência de enfermagem 24 horas por dia, marcar consultas, exames complementares ou internação hospitalar, providenciar o acompanhamento dos pacientes nessas ocasiões e o seu retorno às comunidades de origem, acompanhados das informações sobre o caso.

Além disso, as Casas deverão ser adequadas para promover atividades de educação em saúde, produção artesanal, lazer e demais atividades para os acompanhantes e mesmo para os pacientes em condições para o exercício dessas atividades.Da análise dos documentos anexados aos autos, em especial dos relatórios de fls. 34/53 e 75/110, pode-se observar que foram realizadas somente duas visitas às comunidades Lapaz e Hokomonawo no ano de 2014, tendo sido constatada grande incidência de desnutrição e ocorrência de doenças, tais como Tracoma e Hepatite B.Em que pese restar dúvida quanto à localização das referidas comunidades em território brasileiro, certo é que já contam, em algum grau, com o atendimento por parte do Disei Yanomami.

Verifico que as coordenadas geográficas apuradas durante visita às comunidades apontam que a comunidade Lapaz situa-se em território nacional, fato reconhecido na manifestação da União.Ademais, consoante mapa acostado à fl. 124 do apenso, as comunidades em referência estão situadas dentro do território brasileiro.Desta forma, diante do arcabouço normativo citado e da situação fática delineada nos autos, nesta fase de cognição sumária, entendo demonstrada a verossimilhança do direito alegado.O perigo de dano irreversível está caracterizado diante do quadro epidemiológico apresentado pelas comunidades indígenas, havendo, inclusive,registros de diversos óbitos.No que diz respeito à irreversibilidade do provimento, neste momento de cognição sumária, verifico que o pedido de construção de posto de saúde não se mostra prudente, uma vez que a perfeita localização das comunidades não foi possível, bem como a própria natureza nômade dos membros da comunidade desaconselha o provimento de tal pedido, ao menos por ora.

Por outro lado, o pedido de atendimento mensal às comunidades indígenas Lapaz e Hokomanawo, por meio de equipe de saúde multidisciplinar, mostra-se razoável e consonante com o atendimento básico de saúde, de tal sorte que merece prosperar.Ante o exposto, pelos fundamentos acima expendidos, defiro parcialmente o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, para determinar à União que encaminhe equipes de saúde multidisciplinar às Comunidades Indígenas Lapaz e Hokomanawo, na TI Yanomami, com frequência mensal, devendo encaminhar ao MPF relatório das atividades desenvolvidas, sob pena de multa diária que arbitro em R$ 1.000,00 (mil reais), sem prejuízo de adoção de outras medidas necessárias ao cumprimento da ordem judicial.Considerando que a Portaria nº 254/2002, do Ministério da Saúde, executar ações da política de saúde indígena, intime-se o Ministério Público para que inclua referida autarquia no polo passivo da demanda.Intime-se para cumprimento.Citem-se.

Boa Vista, 10 de junho de 2015.

LUZIA FARIAS DA SILVA MENDONÇA Juíza Federal________________________________________________________________________________________________________________________

Documento assinado digitalmente pelo(a) JUÍZA FEDERAL LUZIA FARIAS DA SILVA MENDONÇA em 10/06/2015, com base na Lei 11.419 de 19/12/2006. A autenticidade deste poderá ser verificada em http://www.trf1.jus.br/autenticidade, mediante código 1647354200283. Pág. 9/9