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Leão Serva - Folha de SP: Morte sistemática de Ianomâmis é um tabu

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23/02/2015 02h00 A Folha publicou com grande destaque na edição de domingo (22) a notícia do lançamento do livro "Nobres Selvagens" (pela Três Estrelas, selo do Grupo Folha), de autoria do antropólogo norte-americano Napoleon Chagnon. Títulos na capa e no caderno da Ilustríssima chamaram a obra de "livro tabu". Trata-se de um exagero baseado no discurso persecutório do autor, que sempre responde às críticas a seu trabalho com alegações de perseguição pessoal ou boicote.

Uma pesquisa no Google News apresenta 872 respostas com notícias sobre o antropólogo e 64 referências ao livro, incluindo veículos de grande prestígio internacional como "The New York Times" e "Washington Post". No Brasil, certamente a obra não foi tema de reportagens simplesmente porque não havia sido lançada. Na edição, textos de Marcelo Leite e André Strauss compilam as principais fragilidades apontadas pelos críticos da obra de Chagnon.

Uma bem importante, no entanto, não foi mencionada: o antropólogo dá pouca importância ao caráter simbólico das expressões da cultura que aparecem nos depoimentos de índios (e de brancos também, é bom que se diga), o que o leva a tomar o que ouve literalmente. Assim, em sua entrevista, é quase infantil a descrição dos perigos de uma aldeia Ianomâmi. Os medos que Chagnon menciona que concentrariam a atenção dos índios para longe dos cuidados médicos (risco de onças e cobras) são próprios de um alienígena. Já os índios criam cobras em casa para comer ratos; sabem que onças têm medo dos homens e, em situações raras, quando se aproximam furtivamente da periferia da aldeia para tocaiar uma criança, logo são capturadas pelos índios, como eu mesmo testemunhei.

Não quer dizer que não haja medo, mas o antropólogo o amplifica para reforçar o estereótipo de atraso. A história de que um casal ianomâmi teria atribuído o desaparecimento de seu filhinho a uma anaconda esfomeada é bizarra: o bebê na aldeia não fica um minuto longe dos outros e uma sucuri no lento processo de engolir uma criança seria vista por dúzias de pessoas e morta. Chagnon certamente não entendeu o que lhe foi dito ou tomou por verdade uma mentira (vale lembrar que um "civilizado" banqueiro suíço também mente).

Em texto mais antigo, Chagnon apontava o gesto de bater no peito, comum em festas de ianomâmis como expressão da violência da cultura desses grupos. Ora, o mesmo movimento pode ser encontrado diariamente em culturas mais "evoluídas", segundo seu critério, das grandes cidades da Europa e dos EUA (nas missas católicas quando se diz "Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa") à Mesopotâmia, berço das civilizações (onde soldados contemporâneos reproduzem o gesto antes de ataques de infantaria). Chagnon não leva em conta o alicerce básico do estudo da antropologia, que as culturas humanas são simultâneas, embora diferentes na expressão material. Por fim, para desfazer as críticas feitas pelo líder Davi Kopenawa, criou a história de que ele é manipulado por antropólogos.

A Folha parte dessa premissa para questionar Chagnon: "As entrevistas com ele costumam ser mediadas por antropólogos", ao que o autor diz: "Pois é", e segue sua catilinária. Trata-se de uma inverdade que qualquer repórter que fale bem português ou ianomâmi pode comprovar. Eu entrevistei Kopenawa três vezes em épocas e lugares diferentes, duas delas sem aviso prévio.

Me aproximei, pedi para falar e conversamos sem mediação. Uma vez, em seu escritório em Boa Vista, ele pediu que outras pessoas (que eu não conhecia, índios e brancos) saíssem da sala para ser entrevistado. Fala fluentemente um português simples (de brasileiro não universitário) com forte sotaque. É preciso ter calma e prestar atenção, por vezes pedir que repita para entender a pronúncia de algumas palavras. A última vez que o encontrei foi numa entrevista para a revista Serafina, com hora marcada. Também ficou só, enquanto eu estava acompanhado da jovem fotógrafa Helena Wolfenson, da Folha.

É possível que estrangeiros que falem mal ou não falem português precisem de tradutor. E são certamente raras as pessoas que falam português, ianomâmi e línguas estrangeiras. Talvez daí a história de que ele se faça acompanhar de "antropólogos" ou gente de ONG. * O que de fato é um "tabu" (aquilo de que não se fala) na imprensa brasileira é o lento processo de abandono dos Ianomâmi à morte, em curso por incompetência ou (depois de tanto tempo) decisão do governo federal.

Como noticiei nesta coluna em maio do ano passado, as mortes de Ianomâmi por problemas de saúde cresceram nos dois governos do PT (Lula e Dilma). Muitas das doenças são simples de evitar, como provam as estatísticas da segunda metade dos anos 1990. O aumento se deve em grande medida à interrupção dos trabalhos de medicina preventiva nas aldeias e ao crescimento dos gastos com transporte dos doentes das aldeias para a capital de Roraima, Boa Vista.

A maior parte dos custos do Ministério da Saúde com a saúde indígena em Roraima tem sido despejada em frete de aviões para levar índios a Boa Vista. São poucas as empresas de táxi aéreo, as mesmas que levam políticos locais em seus deslocamentos. Em janeiro do ano passado, quando a entrevistei, a coordenadora do Ministério da Saúde para as áreas indígenas de Roraima, Maria de Jesus do Nascimento, explicou o aumento das mortes dizendo: "Não, dinheiro não falta... Foi problema de gestão, mesmo". Na área Ianomâmi, uma médica cubana do programa Mais Médicos se desesperava: "Não tenho antibióticos, não tenho oxigênio, não tenho equipamentos". Eu perguntei o que fazia: "Não quero mas sou forçada a mandar os índios de avião para Boa Vista". O meio se tornou o fim.

A saúde dos índios se tornou desculpa para enriquecer as empresas de táxi aéreo. Quem procura no mesmo Google News notícias sobre as mortes de Ianomâmi pela improbidade dos órgãos de saúde local só encontra quatro notícias, uma delas do espanhol El País, as demais noticiando os protestos dos índios e um debate no Congresso. Esse genocídio lento e discreto é o verdadeiro tabu.